NA FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE EM
1902
HELIODORO BALBI
Caros
colegas:
Essa
agalma que ai fica não vos satisfará de certo porque a mim mesmo não satisfaz.
O tempo, que é o fator das obras eternas, passou por ela rápido de mais. Não
pude escodá-la e escandí-la no quanto bastasse à insatisfação do meu espírito
sempre propício o considerar sobre a natureza imperfeita do homem e o fundo
frágil das coisas. A semelhança desse extraordinário escultor alemão, Max
Klinger, que dezesseis anos levara a compor a estátua de Beethoven para que
nela pudesse com exatitude conciliar “o pensamento profundo e doloroso da
civilização cristã com a beleza irradiante do paganismo”, eu deveria voltar com
esta agalma para a oficina, de novo à tenda conduzí-la e, escopro à mão,
durante muitos anos ainda, lavrá-la, refendê-la, bruní-la, retocá-la, para que
satisfizesse a vós pela segurança dos seus conceitos e a mim bastasse pela
beleza de sua forma.
Recebei-a,
porém, assim como está: será grande o vosso desgosto, maior porém é o meu
tormento. Algum dia talvez, se as energias que dentro de mim hoje abrolham não
se tiverem enfraquecido e esta alvorada de amor que dentro de mim resplandece
não se houver apagado, eu vos ofereço um produto mais digno, uma obra mais
duradoira.
Ides
perlustrar desconhecidos caminhos, percorrer estranhas veredas, um dia na volta
de algum atalho ou à margem risonha de alguma clareira havemos de novo de nos
encontrar. Quero ver-vos então como vos vejo agora, encontrar-vos como hoje vos
deixo: sem máculas, sem manchas, sem nódoas, sem impurezas.
“Nestes
dias arrastados e maus em que tudo capitula e rasteja; em que os mais livres
entrouxam as suas crenças no guarda roupa da velhice; em que é preciso alugar um fato de convenção
na mascarada geral, para não cair varado pelos baldões dos apupadores da
verdade; em que não se pode ter a franqueza da coragem honesta, sem assanhar
enxames aferroadores; em que as enxurradas poderosas vão arrebatando às
consciências o desinteresse, a lealdade, o entusiasmo, a justiça, em que a
defesa do direito é a luta do náufrago agarrado às escarpas de um penhasco
solitário e lavrado pelos raios entre as lufadas e o oceano”- ides entrar para
a vida pública, para o fervedouro
político, esse ondeante pélago social, essa gigantesca voragem sempre
escancarada para as grandezas da pátria.
Ides
para o meio dessa tremenda subversão de princípios e caracteres – mas ide como
uma força de resistência, como uma audácia convencida da firmeza do seu protesto. Levantai-vos contra todas as
torpezas e iniqüidades, contra os desmandos dos almetas e bonzos, sátrapas e
lacaios republicanos, cujos ideais não transpuseram nunca a cerca da sua
herdade, a linha do horizonte da sua aldeia e, aparvalhadamente, querem dirigir
opiniões, governar povos, superintender cidades e educar gerações.
O
diploma de capacidade que solenemente hoje recebeis, se é a carta da vossa
liberdade privada, da vossa ação social, o pão da vossa independência política,
é também o código dos vossos deveres humanos. Quando tiverdes consciência de
tudo o que ela vos diz, de tudo o que ela vos quer dizer, a vossa vida será uma
série infinita de lutas contra todas as opressões e contra todos os opressores.
As
sociedades caracterizam-se pelas revoluções e o homem que as constitui e que
não é um centro de revolução não é um fator social. Garibaldi, Mazzini,
Cipriani, Bolivar, Bakounine, Andrada Toltoi, são a imagem da liberdade ela
mesma feita homem, para quebrar os ferros dos mártires e abrir as prisões dos
justos. Protestai, pois, contra todas as tiranias, contra as da imprensa como
as dos governos, contra as dos juízes como as dos mestres, contra as de todos
aqueles que exerçam, por mínima, uma parcela de
poder social. Oponde-vos firme e tenazmente às moafas e mazorcas
daqueles que, com estupendo cinismo e indigna covardia, mercadejam a honra da
pátria infamando a glória de seu nome.
Hoje
que a insaciável paixão da riqueza, o amor desordenado ao ganho, a cupidez sem
nome é a lei dos nossos governantes, dos quais se pode dizer com Sulpicius
Lupercus que
Nulla huic in lucro cura
pudoris erit:
Istud templorum damno
existioque requirit;
Hoc coelo jubeus ut petat,
inde petet...
Entrais
para a vida pública. Entrai sim, mas entrai como uma voz de protesto contra os
oligarcas da República, contra os jornais impudentes, contra os advogados sem
escrúpulos, contra os governos ladrões, contra os juízes venais. Entrai, sim,
mas entrai como legionário do direito, como sentinelas da justiça, como amigos
da liberdade e do homem. O patrimônio dos órfãos, a massa dos falidos, os bens
dos ausentes, precisam de mãos pura para guardá-los, de mãos limpas para
geri-los, de mãos honestas para
move-los.
Hoje
que os Fábios, os Curcius, os Cincinatos raream, desaparecem, morrem, é preciso
criá-los, fazê-los, multiplicá-los. E há de ser de vós que sairá o renascimento
da pátria abatida, a fraternidade dos homens do esboço amorfo da sociedade de amanhã,
prólogo incolor ainda dessa epopéia de luz, inassinalável hoje, ma que será o
estado definitivo e último da constituição social. Trabalhai pela confiança,
pelo amor, pela fraternidade dos homens, pelo progresso indefinido dos Doukhobors, que os sonha entrevistos
por George brandès no Le Grande Homme
e por Tarbouriech em La cité future
não chegarão a ser uma simples ilusão. Trabalhai, colegas, pela redenção do
homem, que será o dia em que, tendo ele plenitude de justiça, não terá mais
necessidade de pleitear direitos.
Iggdrazill
era uma árvore da cosmogonia escandinava. Os seus frutos eram homens e tinham
três raízes - uma para o passado, outra para o presente e a terceira para o
futuro, pois que devia simbolizar a eternidade da vida cósmica. Eternamente
verde baloiçava-se sobre a fonte Urd. Três moças junto a ela detinham o destino
dos filhos do tempo e o orvalho branco que de suas ramas caía, transformava-se
em mel para o alimento das abelhas. Era a maior de todas as árvores e os seus
ramos tocavam o céu. Essa árvore é a imagem perfeita do direito que, depois de
ter estendido ao passado e ao presente, estende-se ao futuro para simbolizar a
eternidade da vida social. Os homens são os sues frutos porque não há convívio
humano. A liberdade, a igualdade e a fraternidade são as suas sentinelas,
condições da sua existência, sem as quais é impossível deter o ímpeto das
paixões; as abelhas que vêm alimentar-se do seu mel, são todos os que têm fome
e sede de justiça (que é a fonte sobre o qual o direito se inclina) são todos
aqueles que ides amparar com o calor o equilíbrio, harmonia, grandeza e
majestade do vasto edifício social.
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