O Supremo Tribunal Federal (STF) decidirá o futuro da Operação Lava Jato sob profunda divisão interna. De um lado, a ala representada pelo ministro Gilmar Mendes, crítico das “alongadas prisões de Curitiba”, defende as prerrogativas dos réus. De outro, o relator Edson Fachin não vê exagero nas prisões preventivas e dá, implicitamente, apoio ao uso delas para forçar delações.
É nesse contexto que deve ser compreendido o pedido feito ontem pela Procuradoria-Geral da República (PGR), para que Gilmar seja considerado “suspeito” ou “impedido”, por ter deferido o habeas corpus que tirou da cadeia o empresário Eike Batista, acusado no processo contra o ex-governador Sérgio Cabral. O pedido ampliará ainda mais o racha no STF, pois o plenário será chamado a decidir sobre a atuação de um de seus próprios integrantes, situação desconfortável para todos os ministros.
Não é o primeiro confronto entre Janot e Gilmar, que acusou a PGR em março pelo vazamento criminoso de nomes de investigados na Lava Jato. Também não será a única decisão a dividir o Supremo nas próximas semanas. Depois que a Segunda Turma mandou soltar o ex-ministro José Dirceu, Fachin enviou ao plenário a decisão sobre o habeas corpus para tirar da cadeia o ex-ministro Antônio Palocci. A defesa recorreu para que tal decisão caiba à Segunda Turma, onde se formou maioria sólida favorável à libertação dos réus.
Ministros que veem abuso nas preventivas, como Gilmar, não acreditam que réus como Eike ou Dirceu ofereçam riscos se postos sob prisão domiciliar ou submetidos a outras medidas cautelares. No processo do mensalão, dizem, ninguém foi preso antes de condenado, e a maioria dos delatores da Odebrecht estava em liberdade quando a empreiteira fechou acordo de delação – embora não o principal, Marcelo Odebrecht.
“Não é a prisão preventiva que é determinante para a pessoa optar pela delação”, afirmou Gilmar em entrevista à Folha de S.Paulo. “É a perspectiva de pena.” Ele sustenta, enfim, que as prisões servem apenas para manter a popularidade da Lava Jato. Diz que o apoio da opinião pública é reforçado com a existência de “vamos chamar assim, entre aspas, reféns”.
Para a força-tarefa da Lava Jato e para a PGR, as preventivas são essenciais para obter as delações. Se não estivesse preso, afirmam, é pouco provável que Marcelo, de início resistente a delatar, tivesse falado tudo o que falou. Sob tal ótica, libertar réus como Palocci ou condenados em primeira instância, como o empreiteiro Léo Pinheiro, beneficia alvos de eventuais delações, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
É por isso que a PGR decidiu agir contra Gilmar. O argumento é que a mulher dele, Guiomar, trabalha no escritório do advogado carioca Sérgio Bermudes, que defende Eike. “Em situações como essa há inequivocamente razões concretas, fundadas e legítimas para duvidar da imparcialidade do juiz”, afirma o procurador-geral Rodrigo Janot na arguição de impedimento e suspeição.
Gilmar afirmou não ter se declarado suspeito porque o escritório de Bermudes defende Eike em ações cíveis, não penais. “Nem cogitei de impedimento, até porque não havia”, disse ele. “Eu já tinha negado habeas corpus ao Eike. E ninguém lembrou que eu poderia estar impedido.” Ainda assim, Bermudes consta como um dos representantes de Eike no processo que tramita no Rio. Janot afirma que ele compareceu a uma das audiências, em 18 de novembro de 2014, além de ter concedido “entrevistas e informações à imprensa como advogado de seu cliente no caso”.
Na arguição, Janot faz uma analogia entre os códigos de processo civil e penal para justificar o impedimento ou a suspeição de Gilmar. O artigo 144 do Código de Processo Civil afirma, em seu inciso VIII, que será vedado ao juiz exercer funções nos processos “em que figura como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge”. O artigo 145 diz, no inciso III, que há suspeição do juiz “quando qualquer das partes for sua credora ou devedora, de seu cônjuge ou companheiro”. Janot afirma que Guiomar, como chefe do escritório de Bermudes em Brasília, pode ser considerada credora de Eike, na medida em que aufere lucros relativos aos pagamentos dele a seus advogados.
Para justificar o uso dos itens do código civil numa questão de natureza penal, Janot argumenta que o próprio Gilmar já admitiu, em habeas corpus de 2010, que pode haver outras causas para impedimento de um juiz, além das previstas no Código de Processo Penal. “Essa inclusão pode se dar por analogia pura e simples, como também pela (…) inclusão, a partir de um referencial legal, de um item não previsto em um rol taxativo”, diz Gilmar no habeas corpus citado por Janot.
Mesmo que persista dúvida jurídica, do ponto de vista ético não há nenhuma: não faz sentido algum Gilmar julgar uma causa em que uma das partes é defendida pelo escritório de que se sua mulher é sócia. Só isso já deveria bastar para que se declarasse impedido. Mas ele ainda resiste. “O escritório em que ela trabalha representa Eike Batista em processos cíveis, o que não tem nada a ver com o tema colocado”, afirma. Com sua contumácia, submeterá os colegas ao constrangimento de ter de julgá-lo e o Brasil a um esfuziante debate sobre as filigranas dos códigos de processo civil e penal.
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