PARIS — Numa manhã de abril de 2004, em Sirta, no litoral mediterrâneo da Líbia, a jovem Soraya, então com 15 anos, soube em sala de aula, por seu professor, que fora escolhida para entregar flores ao líder do país, Muamar Kadafi, na visita do presidente à escola de sua cidade natal. Superado o choque, mas ainda tomada pela excitação, Soraya vestiu para a ocasião especial o traje vermelho tradicional líbio - túnica, calça, véu e um pequeno chapéu. Ansiosa, se perguntava como saudar o grande Guia da Revolução: beijar sua mão? O que dizer? Deveria recitar algo?
Chegado o tão esperado momento, tudo se passou muito rápido. Kadafi recebeu o buquê de flores, examinou-a com o olhar de alto a baixo, e passou a mão na cabeça dela. O anódino gesto, ela foi saber mais tarde, tratava-se de um sinal ao seu entourage. No dia seguinte, por volta das 15h, três guardas femininas do chamado Comitê da Revolução, uma delas vestindo uniforme militar e exibindo uma pistola na cintura, foram buscar a jovem no salão de cabeleireiro de sua mãe.
Sem saber, Soraya acabara de se tornar uma das escravas sexuais de Muamar Kadafi, prisoneira do subsolo de Bab al-Azizia, a sede do governo, na capital, Trípoli. Sua história é descrita em um cru e longo depoimento a Annick Cojean, repórter especial do jornal “Le Monde”, no recém-lançado livro “O harém de Kadafi” (que será lançado no Brasil pela editora Verus na semana que vem). A obra traz uma detalhada investigação sobre a utilização do sexo e do estupro como arma de guerra pelo ditador líbio em seus anos no poder.
Em sua apuração, na qual encontrou outras vítimas sexuais e também integrantes do regime kadafista, a autora revela como o autoproclamado Guia da Revolução estuprava jovens virgens e depois as mantinha por anos sob tutela; sodomizava jovens homens de sua guarda pessoal; recrutava meninas do exterior; se empenhava em seduzir advogadas, diplomatas, mulheres e filhas de seus ministros - e mesmo de outros chefes de Estado africanos.
Soraya foi estuprada, desvirginada, golpeada com violência, ameaçada, forçada a fumar haxixe ou a cheirar cocaína com Kadafi antes de ser submetida a suas sevícias. De seu quarto só podia sair para os aposentos do Guia, quando requisitada, ou para fazer as refeições no refeitório do subsolo, onde estavam alojadas outras jovens do harém presidencial.
“Muamar Kadafi destruiu a minha vida”, resume a jovem em seu relato.
Annick Cojean, que desembarcou na Líbia para inquirir sobre o papel das mulheres líbias nas revoltas contra o governo, acabou descobrindo os horrores da alcova de Bab al-Azizia e encontrou Soraya pela primeira vez em outubro de 2011, dias após a execução de Kadafi pelos rebeldes.
“Descobri que centenas de jovens foram sequestradas por uma hora, uma noite, uma semana ou por anos, e obrigadas, pela força ou pela chantagem, a se sujeitar às fantasias e violências sexuais de Kadafi. Que pais e maridos trancavam suas filhas e mulheres para preservá-las do olhar e da cobiça do Guia. Descobri que o tirano, nascido numa família de beduínos muito pobres, governava pelo sexo, obcecado pela ideia de possuir um dia as mulheres e as filhas de ricos e poderosos, de seus ministros e generais, de chefes de Estado e de soberanos”, escreve.
Soldados recebiam viagra
As célebres “amazonas” de Kadafi, acobertadas no chamado “serviço especial” do governo, serviam à propaganda revolucionária, mas eram na verdade objetos sexuais de seu líder. E a utilização do estupro excedia os limites do bunker presidencial.
Numa prisão de Misurata, Annick entrevistou dois soldados kadafistas, de 22 e 29 anos.
“Por vezes estuprávamos toda uma família. Meninas de oito, nove anos, jovens de 20 anos, sua mãe, às vezes diante de seu avô. Elas gritavam, nós batíamos forte. Mas o líder da tropa insistia: ‘Violem, batam e filmem! Vamos enviar isto para os homens delas. Sabemos como humilhar esses imbecis’”, conta um deles.
- Vimos isso de forma semelhante no Kosovo, no Congo, mas na Líbia era algo muito bem orquestrado. Era tudo filmado, havia distribuição de Viagra para os soldados, com ordens vindo de cima. O sexo era, para Kadafi, uma forma de governar o país - afirma Annick.
Soraya, hoje aos 23 anos, é uma jovem desamparada, aniquilada por seu passado, renegada pela família e ameaçada - tanto por kadafistas como pelos ex-rebeldes agora no poder. A morte do Guia foi, ao mesmo tempo, um alívio e uma frustração. Seu desejo era o de que fosse julgado e condenado por todos os seus crimes, incluindo os sexuais. E para isso estaria disposta a revelar sua identidade e testemunhar diante de uma corte penal internacional. Mas o destino decidiu de outra forma.
- Soraya foi extremamente corajosa em contar a sua história. Pensava que, depois dela, muitas mulheres falariam também. Mas não foi o que aconteceu. O peso do tabu em torno disso, nesta sociedade extremamente conservadora, é enorme. Tidas como prostitutas, são ameaçadas pelos extremistas religiosos, e também por revolucionários zelosos, que sem piedade as condenam por terem, de uma certa forma, pertencido à gangue de Kadafi. Também por isso decidi fazer este livro (que será lançado na Líbia no final de outubro, em árabe), para que essas mulheres, impedidas de falar, possam ser vistas como devem ser: como vítimas, e não como culpadas - diz a autora.
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