Carlos Costa é jornalista e escrito, além de Assistente Social |
Um tabuleiro em forma quadrada ou retangular e uma rodilha para apoiá-lo sobre a cabeça. Era assim que o “Peixeiro” passava aos gritos na rua a plenos pulmões: “peixeiro!! peixeiro, quem vai querer peixe fresquinho?!!. Logo atrás, vinha sua filha, descompensada, imitando-o: “ “pikita, pikita, quem quer pikita, quem vai querer pikita fresquinha?!!”. Seu pai mandando-a entrar, voltar para casa e não ficar se expondo daquela maneira! Mas a filha insistia: “quem vai querer pikita, olha a pikita fresquinha!”.
Geralmente o peixeiro, além do peixe fresco, vendia também o cheiro verde, pimenta e o limão, complementos indispensáveis para qualquer preparo que se queira fazer um peixe! E sua filha continuava gritando: “quem vai querer pikita, quem vai querer pikita”... Os dois passavam na rua, quase sempre juntos, o pai na frente com o tabuleiro na cabeça e sua filha logo atrás, mexendo no vestido e gritando!
O peixeiro morava na mesma rua, no bairro da Betânia e todos os dias colocavam um tabuleiro de mais de 100 quilos de peixes variados na cabeça, sem quaisquer dificuldades, apoiado apenas na rodilha. Assim, passava na Avenida em que morei, anunciando-os aos gritos: “Peixeiro! Peixeiro! Quem vai querer peixe fresquinho!”. Sua filha, de uns 14 anos, a uns 10 metros de distância, cabelos desalinhados, saia longa à altura dos joelhos, imitando-o, também gritava: “pikita, pikita, quem vai querer pikita fresquinha”! O pai olhava-a bravo, mas a filha nem se importava e continuava com seu ritual: “pikita, quem vai querer...!”. E a gurizada da rua gritando: “doida, doida, lá vai o peixeiro e sua filha doida!”
Minha mãe, sempre que tinha algum dinheiro, comprava algum peixe fresquinho na porta de casa, tambaqui, pacu, tucunaré, jaraqui e outros tipos que estivessem em época de piracema. A filha, sempre mantendo uma certa distância, acompanhava-o.
Na década de 70, não havia a consciência de preservação ecológica que existe nos dias de hoje, nada se falava em defeso porque na fatura de peixe, quanto mais ova tivesse, melhor para vendê-lo e mais caro seria. A ova do jaraqui, por exemplo, dava um gostoso refogado frito, com cebola um pouco de cebola e tomate. Era uma delícia! Eu gostava e minha mãe preparava muito bem!
Com o progresso, muitas profissões importantes no processo de desenvolvimento de comunidades foram desaparecendo: peixeiro, sapateiro, leiteiro, catraieiro, cascalheiro, offce-boy, engraxate, reparador de roupas e muitas outras. Contudo, doença mental, continua existindo nos dias de hoje! Infelizmente!
Mas o que quero contar não é sobre o peixeiro em si, um moreno forte, musculoso. Mas sobre a sua filha que o esperava sair de casa e corria pela rua gritando: “quer pikita”, “quer pikita”, imitando-o, no mesmo tom. Por que será que do peixeiro, só sobraram mesmo as doenças mentais de sua filha?
Dez anos mais tarde, conheci o médico psiquiatra Rogélio Casado, excelente profissional que, juntamente com a enfermeira Margarida Campos e outros companheiros, deram início a um movimento para o tratamento digno dos doentes mentais, sem internação, em ambulatórios. Se eu já o tivesse conhecido naquela época, talvez a filha do peixeiro não saísse atrás de seu pai gritando, “pikita, quem vai querer pikita”!
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