O
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB)
divulgou uma carta na noite desta quinta-feira (20) direcionada aos eleitores,
na qual pede serenidade e prega união entre partidos para que o futuro
presidente promova os ajustes necessários para evitar uma "crise econômica
ainda mais profunda".
"Em minha já
longa vida recordo-me de poucos momentos tão decisivos para o futuro do Brasil
em que as soluções dos grandes desafios dependeram do povo", diz o
ex-presidente na abertura da carta, referindo-se às eleições que ocorrem em
outubro.
Veja abaixo a íntegra da carta de
Fernando Henrique Cardoso:
Carta aos eleitores e eleitoras
Em poucas semanas escolheremos os candidatos
que passarão ao segundo turno. Em minha já longa vida recordo-me de poucos
momentos tão decisivos para o futuro do Brasil em que as soluções dos grandes
desafios dependeram do povo. Que hoje dependam, é mérito do próprio povo e de
dirigentes políticos que lutaram contra o autoritarismo nas ruas e no Congresso
e criaram as condições para a promulgação, há trinta anos, da Constituição que
nos rege.
Em plena vigência do estado de
direito nosso primeiro compromisso há de ser com a continuidade da democracia.
Ganhe quem ganhar, o povo terá decidido soberanamente o vencedor e ponto final.
A democracia para mim é um valor
pétreo. Mas ela não opera no vazio. Em poucas ocasiões vi condições políticas e
sociais tão desafiadoras quanto as atuais. Fui ministro de um governo fruto de
outro impeachment, processo sempre traumático. Na época, a inflação beirava
1000 por cento ao ano. O presidente Itamar Franco percebeu que a coesão
política era essencial para enfrentar os problemas. Formou um ministério com
políticos de vários partidos, incluída a oposição ao seu governo, tal era sua
angústia com o possível despedaçamento do país. Com meu apoio e de muitas
outras pessoas, lançou-se a estabilizar a economia. Criara as bases políticas
para tanto.
Agora, a fragmentação social e
política é maior ainda. Tanto porque as economias contemporâneas criam novas
ocupações, mas destroem muitas outras, gerando angústia e medo do futuro, como
porque as conexões entre as pessoas se multiplicaram. Ao lado das mídias
tradicionais, as “mídias sociais” permitem a cada pessoa participar diretamente
da rede de informações (verdadeiras e falsas) que formam a opinião pública. Sem
mídia livre não há democracia.
Mudanças bruscas de escolhas
eleitorais são possíveis, para o bem ou para o mal, a depender da ação de cada
um de nós.
Nas escolhas que faremos o pano de
fundo é sombrio. Desatinos de política econômica, herdados pelo atual governo,
levaram a uma situação na qual há cerca de treze milhões de desempregados e um
déficit público acumulado, sem contar os juros, de quase R$ 400 bilhões só nos
últimos quatro anos, aos quais se somarão mais de R$ 100 bilhões em 2018. Essa
sequência de déficits primários levou a dívida pública do governo federal a
quase R$ 4 trilhões e a dívida pública total a mais de R$ 5 trilhões, cerca de
80% do PIB este ano, a despeito da redução da taxa de juros básica nos últimos
dois anos. A situação fiscal da União é precária e a de vários Estados,
dramática.
Como o novo governo terá gastos
obrigatórios (principalmente salários do funcionalismo e benefícios da
previdência) que já consomem cerca de 80% das receitas da União, além de uma
conta de juros estimada em R$ 380 bilhões em 2019, o quadro fiscal da União
tende a se agravar. O agravamento colocará em perigo o controle da inflação e
forçará a elevação da taxa de juros. Sem a reversão desse círculo vicioso o
país, mais cedo que tarde, mergulhará em uma crise econômica ainda mais
profunda.
Diante de tão dramática situação, os
candidatos à Presidência deveriam se recordar do que prometeu Churchill aos
ingleses na guerra: sangue, suor e lágrimas. Poucos têm coragem e condição
política para isso. No geral, acenam com promessas que não se realizarão com
soluções simplistas, que não resolvem as questões desafiadoras. É necessária
uma clara definição de rumo, a começar pelo compromisso com o ajuste inadiável
das contas públicas. São medidas que exigem explicação ao povo e tempo para que
seus benefícios sejam sentidos. A primeira dessas medidas é uma lei da
Previdência que elimine privilégios e assegure o equilíbrio do sistema em face
do envelhecimento da população brasileira. A fixação de idades mínimas para a
aposentadoria é inadiável. Ou os homens públicos em geral e os candidatos em
particular dizem a verdade e mostram a insensatez das promessas enganadoras ou,
ganhe quem ganhar, o pião continuará a girar sem sair do lugar, sobre um
terreno que está afundando.
Ante a dramaticidade do quadro atual,
ou se busca a coesão política, com coragem para falar o que já se sabe e a
sensatez para juntar os mais capazes para evitar que o barco naufrague, ou o
remendo eleitoral da escolha de um salvador da Pátria ou de um demagogo, mesmo
que bem intencionado, nos levará ao aprofundamento da crise econômica, social e
política.
Os partidos têm responsabilidade
nessa crise. Nos últimos anos, lançaram-se com voracidade crescente ao butim do
Estado, enredando-se na corrupção, não apenas individual, mas institucional:
nomeando agentes políticos para, em conivência com chefes de empresas, privadas
e públicas, desviarem recursos para os cofres partidários e suas campanhas. É
um fato a desmoralização do sistema político inteiro, mesmo que nem todos hajam
participado da sanha devastadora de recursos públicos. A proliferação dos
partidos (mais de 20 na Câmara Federal e muitos outros na fila para serem
registrados) acelerou o “dá-cá, toma-lá” e levou de roldão o sistema
eleitoral-partidário que montamos na Constituição de 1988. Ou se restabelece a
confiança nos partidos e na política ou nada de duradouro será feito.
É neste quadro preocupante que se vê
a radicalização dos sentimentos políticos. A gravidade de uma facada com
intenções assassinas haver ferido o candidato que está à frente nas pesquisas
eleitorais deveria servir como um grito de alerta: basta de pregar o ódio,
tantas vezes estimulado pela própria vítima do atentado. O fato de ser este o
candidato à frente das pesquisas e ter ele como principal opositor quem
representa um líder preso por acusações de corrupção mostra o ponto a que
chegamos.
Ainda há tempo para deter a marcha da
insensatez. Como nas Diretas-já, não é o partidarismo, nem muito menos o
personalismo, que devolverá rumo ao desenvolvimento social e econômico. É
preciso revalorizar a virtude da tolerância à política, requisito para que a democracia
funcione. Qualquer dos polos da radicalização atual que seja vencedor terá
enormes dificuldades para obter a coesão nacional suficiente e necessária para
adoção das medidas que levem à superação da crise. As promessas que têm sido
feitas são irrealizáveis. As demandas do povo se transformarão em insatisfação
ainda maior, num quadro de violência crescente e expansão do crime organizado.
Sem que haja escolha de uma liderança
serena que saiba ouvir, que seja honesto, que tenha experiência e capacidade
política para pacificar e governar o país; sem que a sociedade civil volte a
atuar como tal e não como massa de manobra de partidos; sem que os candidatos
que não apostam em soluções extremas se reúnam e decidam apoiar quem melhores
condições de êxito eleitoral tiver, a crise tenderá certamente a se agravar. Os
maiores interessados nesse encontro e nessa convergência devem ser os próprios
candidatos que não se aliam às visões radicais que opõem “eles” contra ”nós”.
Não é de estagnação econômica,
regressão política e social que o Brasil precisa. Somos todos responsáveis para
evitar esse descaminho. É hora de juntar forças e escolher bem, antes que os
acontecimentos nos levem para uma perigosa radicalização. Pensemos no país e
não apenas nos partidos, neste ou naquele candidato. Caso contrário, será
impossível mudar para melhor a vida do povo. É isto o que está em jogo: o povo
e o país. A Nação é o que importa neste momento decisivo.
Fonte: G1