terça-feira, 5 de junho de 2012

NA FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE EM 1902
HELIODORO BALBI
Caros colegas:
Essa agalma que ai fica não vos satisfará de certo porque a mim mesmo não satisfaz. O tempo, que é o fator das obras eternas, passou por ela rápido de mais. Não pude escodá-la e escandí-la no quanto bastasse à insatisfação do meu espírito sempre propício o considerar sobre a natureza imperfeita do homem e o fundo frágil das coisas. A semelhança desse extraordinário escultor alemão, Max Klinger, que dezesseis anos levara a compor a estátua de Beethoven para que nela pudesse com exatitude conciliar “o pensamento profundo e doloroso da civilização cristã com a beleza irradiante do paganismo”, eu deveria voltar com esta agalma para a oficina, de novo à tenda conduzí-la e, escopro à mão, durante muitos anos ainda, lavrá-la, refendê-la, bruní-la, retocá-la, para que satisfizesse a vós pela segurança dos seus conceitos e a mim bastasse pela beleza de sua forma.
Recebei-a, porém, assim como está: será grande o vosso desgosto, maior porém é o meu tormento. Algum dia talvez, se as energias que dentro de mim hoje abrolham não se tiverem enfraquecido e esta alvorada de amor que dentro de mim resplandece não se houver apagado, eu vos ofereço um produto mais digno, uma obra mais duradoira.
Ides perlustrar desconhecidos caminhos, percorrer estranhas veredas, um dia na volta de algum atalho ou à margem risonha de alguma clareira havemos de novo de nos encontrar. Quero ver-vos então como vos vejo agora, encontrar-vos como hoje vos deixo: sem máculas, sem manchas, sem nódoas, sem impurezas.
“Nestes dias arrastados e maus em que tudo capitula e rasteja; em que os mais livres entrouxam as suas crenças no guarda roupa da velhice;  em que é preciso alugar um fato de convenção na mascarada geral, para não cair varado pelos baldões dos apupadores da verdade; em que não se pode ter a franqueza da coragem honesta, sem assanhar enxames aferroadores; em que as enxurradas poderosas vão arrebatando às consciências o desinteresse, a lealdade, o entusiasmo, a justiça, em que a defesa do direito é a luta do náufrago agarrado às escarpas de um penhasco solitário e lavrado pelos raios entre as lufadas e o oceano”- ides entrar para a vida pública, para  o fervedouro político, esse ondeante pélago social, essa gigantesca voragem sempre escancarada para as grandezas da pátria.
Ides para o meio dessa tremenda subversão de princípios e caracteres – mas ide como uma força de resistência, como uma audácia convencida da firmeza  do seu protesto. Levantai-vos contra todas as torpezas e iniqüidades, contra os desmandos dos almetas e bonzos, sátrapas e lacaios republicanos, cujos ideais não transpuseram nunca a cerca da sua herdade, a linha do horizonte da sua aldeia e, aparvalhadamente, querem dirigir opiniões, governar povos, superintender cidades e educar gerações.
O diploma de capacidade que solenemente hoje recebeis, se é a carta da vossa liberdade privada, da vossa ação social, o pão da vossa independência política, é também o código dos vossos deveres humanos. Quando tiverdes consciência de tudo o que ela vos diz, de tudo o que ela vos quer dizer, a vossa vida será uma série infinita de lutas contra todas as opressões e contra todos os opressores.
As sociedades caracterizam-se pelas revoluções e o homem que as constitui e que não é um centro de revolução não é um fator social. Garibaldi, Mazzini, Cipriani, Bolivar, Bakounine, Andrada Toltoi, são a imagem da liberdade ela mesma feita homem, para quebrar os ferros dos mártires e abrir as prisões dos justos. Protestai, pois, contra todas as tiranias, contra as da imprensa como as dos governos, contra as dos juízes como as dos mestres, contra as de todos aqueles que exerçam, por mínima, uma parcela de  poder social. Oponde-vos firme e tenazmente às moafas e mazorcas daqueles que, com estupendo cinismo e indigna covardia, mercadejam a honra da pátria infamando a glória de seu nome.
Hoje que a insaciável paixão da riqueza, o amor desordenado ao ganho, a cupidez sem nome é a lei dos nossos governantes, dos quais se pode dizer com Sulpicius Lupercus que
Nulla huic in lucro cura pudoris erit:
Istud templorum damno existioque requirit;
Hoc coelo jubeus ut petat, inde petet...
Entrais para a vida pública. Entrai sim, mas entrai como uma voz de protesto contra os oligarcas da República, contra os jornais impudentes, contra os advogados sem escrúpulos, contra os governos ladrões, contra os juízes venais. Entrai, sim, mas entrai como legionário do direito, como sentinelas da justiça, como amigos da liberdade e do homem. O patrimônio dos órfãos, a massa dos falidos, os bens dos ausentes, precisam de mãos pura para guardá-los, de mãos limpas para geri-los, de mãos honestas  para move-los.
Hoje que os Fábios, os Curcius, os Cincinatos raream, desaparecem, morrem, é preciso criá-los, fazê-los, multiplicá-los. E há de ser de vós que sairá o renascimento da pátria abatida, a fraternidade dos homens do esboço amorfo da sociedade de amanhã, prólogo incolor ainda dessa epopéia de luz, inassinalável hoje, ma que será o estado definitivo e último da constituição social. Trabalhai pela confiança, pelo amor, pela fraternidade dos homens, pelo progresso indefinido dos Doukhobors, que os sonha entrevistos por George brandès no Le Grande Homme e por Tarbouriech em La cité future não chegarão a ser uma simples ilusão. Trabalhai, colegas, pela redenção do homem, que será o dia em que, tendo ele plenitude de justiça, não terá mais necessidade de pleitear direitos.

Iggdrazill era uma árvore da cosmogonia escandinava. Os seus frutos eram homens e tinham três raízes - uma para o passado, outra para o presente e a terceira para o futuro, pois que devia simbolizar a eternidade da vida cósmica. Eternamente verde baloiçava-se sobre a fonte Urd. Três moças junto a ela detinham o destino dos filhos do tempo e o orvalho branco que de suas ramas caía, transformava-se em mel para o alimento das abelhas. Era a maior de todas as árvores e os seus ramos tocavam o céu. Essa árvore é a imagem perfeita do direito que, depois de ter estendido ao passado e ao presente, estende-se ao futuro para simbolizar a eternidade da vida social. Os homens são os sues frutos porque não há convívio humano. A liberdade, a igualdade e a fraternidade são as suas sentinelas, condições da sua existência, sem as quais é impossível deter o ímpeto das paixões; as abelhas que vêm alimentar-se do seu mel, são todos os que têm fome e sede de justiça (que é a fonte sobre o qual o direito se inclina) são todos aqueles que ides amparar com o calor o equilíbrio, harmonia, grandeza e majestade do vasto edifício social.

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