segunda-feira, 14 de maio de 2012

O VERBO DE BALBI

João Leda


Discorrendo sôbre a vida intelectual de Cicero, observou Bussuet em profunda análise, como era próprio do seu feito literário, coroável das minúcias, que o egrégio orador romano imprimia às suas produções de qualquer gênero a elocução peculiar da tribuna, constituindo essa qualidade inata do seu espírito um encanto para quem quer que o ouvisse. Ainda no despreocupado lavor das suas cartas intimas, Cícero, se as lia a algum interlocutor no convívio doméstico, declamava-as com ênfase, sublinhando as frases de mais interesse com o entorno especial de quem discursa. E tão perfeito era no compor, como no ler o que compunha.
Invocamos esse episódio histórico, recolhido de antigas leituras, para associá-lo a uma lembrança grata que guardamos de Heliodoro Balbi, em cujo temperamento literário era também evidente a singular propensão a que aludimos. Jornalista, crítico, professor e orador, era todavia nesta derradeira feição de seu fecundo talento que consubstanciava as demais. Se Balbi reconhecia essa tendência irrefugível, ignorâmo-lo; mas que a certificavam muitas dos que ele admitiu à sua esplêndida camaradagem, é certo.
De feito, eram instantes de volúpia espiritual os que passávamos a ouvir Heliodoro na aprumada declamação dos seus mais simples escritos. O cálamo do jornalista nervosamente arrebatado, no ataque como na defesa, soava na sua boca como um vibrante requesitório de rosto, onde a argumentação borbulhava e cachoava na candência dos adjetivos, no explodir da frase viril e cortante, no comento pulverizador das alegações adversas.
Nunca lhe foi fácil a atitude serena na magistratura da crítica, e talvez não se lhe conheça uma página em que, de par com tolerantes e amenos conceitos, não abrolhe o acúleo da ironia a rever o ânimo irrequieto e combativo Balbi. Sempre e sempre o orador nas ardências do elóquio.
Na cátedra, igualmente. Esse seu modo de ser mental achava ai exuberante, despeada expansão. Pelo comum, o ponto da matéria, de antemão fornecido aos alunos, representava apenas um pretexto para dissertações eloquentes. Ampla cultura, servida por extraordinário memória, ministrava a Balbi elementos a flux para explanação de jeito tribunício, que eram incontroversamente o seu forte; e era vê-lo então copioso e facundo, na multiplicidade dos conforme e paralelos, no entrechoque dos seus com os pontos de vista dos autores, não raro em sínteses magníficas, que muitas vezes explicavam êxido, nos exames, dos estudantes de melhor e mais segura retentiva.
 Conclua-se agora do que fica dito o que poderia ser Balbi, tribuno até a medula, perante uma multidão que, rumorejando na praça pública, lhe estimulasse os clamores de vingador popular, confiando-lhe ao patrocínio a reivindicação de um direito, a obtenção de um ato elementar justiça, inflexivelmente negado pelos governos. Nesses momentos, a torrente oratória de Balbi espadanava em tropos rutilantes, sua indignação trovejava metáforas de fogo, fraguava imagens que sacudiam o auditório incrível turbilhonar verbalista, em que iam rolando os governantes marcados com cruéis estigmas, numa flagelação que durava até que a fadiga empolgasse o fadiga empolgasse  o flagelador. Muito mais que a atuação catedrática do mestre, muito mais que os triunfos do jornalista e os ensinamentos do crítico, entreluzem na memória da geração que vai passando as orações formidáveis desse ídolo das turba, de quem ficaram altos pensamentos, ainda hoje repetidos na saudade de quantos o amaram e admiraram.
Obs: Neste texto, preserva-se a linguagem ortográfica da época




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