sexta-feira, 30 de março de 2012

MILLÔR

Conversei com Millôr Fernandes uma única vez na vida, num restaurante do Rio de Janeiro, apresentado pelo querido amigo cineasta Silvio Tendler. Foi delicioso ouvi-lo e a sua irreverência genial por um bom tempo, que pareceu curto, quando acabou.

Fiquei triste com sua morte, partilhando o sentimento da nação, e, sem dúvida, fiquei surpreso ao ler que Millôr tinha idade. É que ele sempre me pareceu atemporal, jovem o tempo inteiro, antecipadamente imortal.
Algumas vezes, pensava nele e me pilhava constatando um ser acima dos calendários, dos meses, dos dias, das semanas. Intelectual de rara densidade, pensador, escritor de talento, tradutor, cartunista, frasista notável, eis o retrato de um sábio ocidental.
Suas passagens por expressivos jornais e revistas faziam do seu trabalho, obrigatoriamente, o começo da leitura. Mas tenho ternura especial pelo Millor do Pasquim, aquela trincheira de resistência à ditadura, montada por intelectuais conscientes do seu dever de lutar pelas liberdades.
Intelectual a favor da tirania aceita desmoralizar-se para justificá-la e fortalecê-la. Já o Pasquim era tocado por intelectuais que cumpriram papel inegável de agentes da transformação positiva.
Àquela época, a questão era estar a favor ou contra o regime que oprimia e despolitizava a sociedade. Hoje, felizmente, o Brasil virou plural, não precisa mais de gente ampla, passaram a ser possíveis as nuances, as discordâncias entre antigos aliados que o estado de exceção obrigava a ficarem juntos.
Millôr Fernandes pensava com genialidade e coragem o Brasil desde sempre, desde bem antes do movimento militar de março-abril de 1964. A coragem nunca foi e nunca será expletiva na vida pública.
A implantação do arbítrio, porém, mostrou o quão destemido era mesmo o grande pensador. A redemocratização veio e a ordem constitucional é testemunha das mil outras formas de coragem de quem jamais deixou de criar, criticar, inovar.
Um dado extraordinário da turma do Pasquim era a saudável mistura da preocupação política direta com o apoio a quem ousava desafiar costumes esclerosados e, portanto, pilares de um atraso que asfixiava e castrava talentos, alegrias, vocações.
Fugia do estereótipo de que os combatentes por liberdade, por definição, teriam de ser chatos, pretensiosa e falsamente teóricos e, em grande parte dos casos, incapazes da verdadeira ação. 


Sempre enxerguei Milôor como vanguarda dessa abertura, ele que jamais deixou de ser vanguarda em nenhuma quadra de sua existência. Sempre o pressenti andando à frente dos tempos.

Talvez por isso eu jamais tenha sido capaz de lhe precisar a idade. Bem explicável, aliás: ele simplesmente não tinha idade. Seu cérebro privilegiado, sua sensibilidade, suas emoções, tornavam irrelevante a certidão de nascimento.
Millôr Fernandes não morreu. Deu-se apenas a oficialização de sua imortalidade.

Arthur Virgílioex-senador pelo PSDB, é diplomata

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